Vila Cultural Gibiteca Zona
Norte
Nossa Vila Cultural tem o objetivo de oferecer à
comunidade do entorno, em primeira instância, e à dos Cinco Conjuntos, por
abrangência, um espaço de fruição e produção de cultura, de convivência e
atendimento para a comunidade local e de circulação de outros grupos e
projetos, de forma a promover a descentralização, democratização e socialização
da cultura e a valorização do espaço local através da recuperação de folguedos
tradicionais como o Boi de Mamão e formas de viver, de festejar e de se
alimentar que fazem parte da identidade local.
Boi Voador do Aquiles – Festa, Drama e Memória
Como uma ONG de Artes Gráficas, que trabalha com
a riqueza expressiva da linguagem da História em Quadrinhos e da Ilustração, sempre
optamos por uma valorização dos temas, dos sabores, dos enredos e roteiros que
privilegiassem a identidade e a cultura brasileiras. As HQs, principalmente,
transitam para as ações performáticas com muita facilidade, sendo, inclusive,
consideradas como as únicas artes gráficas que são definidas como uma forma de
arte cinética, pois objetivam suscitar a sensação do movimento, da cena:
personagens, cenários, roteiros, falas, enredos – em suma, todos os elementos
que se encontram nas artes da encenação – estão presentes nas HQs, de modo que
a confluência entre estas linguagens é clara e usual (RPG, Live Action, Story
Board, Cosplay, só para citar os mais comuns).
Desta forma, quando percebemos que havia uma
dificuldade real das crianças e jovens trabalharem com uma temática brasileira
ou mesmo se identificarem com um traço que citasse nossa cultura, pois estas
foram apagadas e desvalorizadas nas últimas décadas – donde a necessidade das
Leis 10.639/03 e 11.645/08, instituindo a obrigatoriedade do ensino da História
e da Cultura dos povos de matriz africana e indígena nas escolas brasileiras –
buscamos recursos que permitissem a re-vivência desta realidade: estes
recursos, obviamente, foram de natureza performática; primeiro, o RPG e, logo,
em função da própria Lei 10.639/03, as performances da arte popular
tradicional. Dentre estas performances, a mais bem-sucedida foi a do auto
dramático do Boi Bumbá, considerado no Dicionário do Folclore Brasileiro de
Câmara Cascudo, “o folguedo brasileiro de maior significado estético e social”
(1984:150). Trabalhar com os personagens do Boi, com os temas e episódios, com
a linguagem, com a tradição e a inovação, nesta história de vida, morte e
superação, nos permitiu devolver às crianças e jovens (muitas, tantas vezes, aos
próprios oficineiros), o gosto do Brasil e o orgulho da sua identidade e da sua
cultura.
O Boi Bumbá existe ao longo de todo o território
nacional: construindo dezenas de variantes a partir da história do Pai Chico, o
qual, para atender o desejo de sua mulher Catirina que, grávida, quer comer a
língua do Boi encantado do Patrão – Boi dançarino e todo enfeitado – o qual,
posteriormente, ao ser revivido por poderes ancestrais, ressuscita como o Boi
do Povo, simbolizando a liberdade e a construção de um mundo novo. Nesta saga
do casal de ex-escravos, se envolvem, conforme a região do país, personagens as
mais variadas, como o Mateus (o malandro esperto que ridiculariza o poder), a
Cobra-Grande (mito indígena que separa o Dia da Noite), o Jaraguá (monstro que
vem testemunhar a ira da terra corrompida pela ganância humana), os Papa-Angu
(fantasmas que vêm participar da festa), o próprio Diabo, Sinhás e Sinhazinhas,
Índios e Índias, Médicos, Padres e Delegados vêm participar do enredo
fantástico; e, dependendo da região, o Boi pode ser revivido pelos
encantamentos e pela sabedoria do misterioso Kazumbá, ou pelo Pajé, ou pelo
Preto-Velho ou pelas Bruxas de Santa Catarina.
Na Região Sul, por influência dos vários povos que
somaram, aos escravos e indígenas, suas próprias histórias e fantasias, se
constrói o Boi de Mamão. O Boi de Mamão difere dos outros Bois do Brasil pela
presença dos Bonecões, de influência açoriana, que introduzem no auto
tradicional as Maricotas, transformam o feroz Jaraguá numa figura mais amena e
dão feição à grande e misteriosa Bernúncia – cobra que remete ao M’Boitatá
indígena e ao Oxumaré. Mais um outro elemento caracteriza o Boi de Mamão: ele
se estrutura a partir de pequenas cenas, de diferentes feitios: é a história da
Cabra que precisa salvar seus Cabritinhos da fome e da sanha do Lobo; é o Cão
que luta contra o Urubu que vem bicar o Boi agonizante; são os Ursos que se
exibem ou que se defrontam, discutindo diversidade e igualdade; são as
Maricotas, grandes mulheres (têm cerca de 03 m. de altura), a negra, a loura e
a ruiva, que vêm contar suas histórias de exclusão e de superação; é o Mateus
que fazendo graça, tudo subverte, denuncia e aponta. Estas histórias, ora
aparecem, ora, desaparecem, ora se transformam, numa dinâmica cultural que muda
para permanecer.
E
permanecer como? Permanecer como uma história mítica que simboliza, com rara
clareza, o desejo que o povo tem de existir com dignidade, de repartir, através
da língua do Boi.
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